09 JUN 2021 • DIREITOS HUMANOS
A pauta da representatividade nunca esteve tão em alta. O que é, em tese, algo muito positivo, pois representa um avanço em discussões que, em um passado não tão distante, nem ao menos chegavam perto do tema, quiçá do debate acerca dele.
Mas, há quem se aproveite do que a representatividade traz consigo. O primeiro a observar isso não foi ninguém mais, ninguém menos do que Martin Luther King Jr., ao cunhar a expressão token para se dirigir a movimentos, círculos sociais, grupos privilegiados em geral que adicionavam um símbolo de uma luta, qualquer que ela fosse, para o seu contexto.
Em suma, seguindo a definição do dicionário Merriam-Webster, Tokenismo pode ser resumido à política ou prática de fazer apenas um esforço simbólico.
Um símbolo de negritude, de diversidade sexual, de equidade de gênero. Uma espécie de marketing, como muitas empresas hoje o fazem, para dizer: “olha só o quão avançados nós somos, temos um negro, uma mulher e um homossexual trabalhando conosco”. E o mais triste dizer é que, infelizmente, esta estratégia funciona até os dias de hoje.
Um grande exemplo contemporâneo foi o casamento da realeza britânica, do príncipe Harry com a, até então, cidadã comum, Meghan Markle. Muito se foi dito antes e depois de seu casamento. A realeza estava finalmente aceitando o diferente, ainda que esta diferença visse (viesse?) na forma de uma jovem cuja negritude estava totalmente envernizada, camuflada não apenas pelo tom claro de sua pele, o que não a torna menos negra em nenhuma circunstância, mas em seu comportamento, sua vestimenta e seu cabelo.
Defendemos a liberdade acima de tudo, claro, mas quando se nega aspectos inerentes à sua raça, o indivíduo evidentemente quer passar uma mensagem. E a mensagem da vez era: eu sou como vocês. E ela foi. A primeira negra a fazer parte da realeza britânica, mas por pouco tempo.
Como vimos na entrevista concedida por Harry e Meghan à Oprah, Meghan não foi nada além de um símbolo, uma tentativa frágil de representatividade que nem mesmo o tom claro de sua pele foi capaz de sustentar. O preconceito daquele universo já era embutido, enraizado demais para suportar qualquer diferença. O casal deixou a família real e logo expuseram o que aquele mundo, de fato, queria: um símbolo para sustentar uma mentira, a de que aquele núcleo estava realmente abrindo suas portas para as diferenças.
Este é um exemplo gritante, mas não precisamos ir muito longe. Marcas com campanhas que fomentam inclusão em todas as formas, seja de raça, sexualidade, Pessoas com Deficiência, etc. As propagandas são muito bonitas, mas os números provam justamente o contrário.
Segundo a Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2019, mulheres brancas ganham até 70% a mais do que mulheres negras.
As mesmas mulheres negras com nível superior ganham por volta de R$ 3.712,00. Já as mulheres brancas com o mesmo nível ganham até R $4.760,00.
Enquanto homens não negros de nível superior ganham, em média, R$ 7.033,00, homens negros com o mesmo nível acadêmico recebem cerca de R$ 4.834,00, 31% a menos.
Negros ocupam também apenas 0,7% dos cargos de diretoria nas empresas, ocupando 47,6% dos cargos operacionais.
Fonte:https://www.cut.org.br/noticias/racismo-estrutural-segrega-negros-no-mercado-de-trabalho-548e
Quando falamos de Pessoas com Deficiência, o cenário não muda. Uma pesquisa do IBGE realizada em 2018 identificou que 6,7% da população brasileira possui alguma deficiência, o que corresponde a 12,7 milhões de pessoas. E dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indicaram que deste número, 486 mil pessoas estavam em empregos formais.
Já a população LGBTQIA+ não fica de fora da conta: uma pesquisa feita pelo site de recrutamento Elancers mostrou que 20% das empresas no Brasil não contratam gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais ou travestis por conta da sua identidade de gênero e orientação afetiva e sexual.
Fonte: https://folhadirigida.com.br/mais/noticias/especiais/inclusao-lgbtqi-ambiente-trabalho
E, ainda assim, vemos diariamente nas telas o tokenismo acontecendo diante de nós. O que é, até mesmo, cruel.
Cruel pois esta falsa ideia de inclusão gera uma ilusão no receptor. Seja ele um consumidor de mercado ou um espectador das diferentes mídias que temos em mãos.
Outro exemplo, desta vez voltado para a cultura pop, foi o da saga Star Wars, em sua última trilogia. Quando o ator John Boyega foi anunciado, a saga tão vanguardista e com uma base de fã majoritariamente conservadora parecia finalmente estar dando um passo para um caminho mais progressista, onde todos, negros e mulheres - os protagonistas do filme - poderiam ser heróis.
Mas não demorou muito para que o arco de seu personagem, Finn, fosse deixado de lado para priorizar outros núcleos de pessoas brancas. E ao escrever isso, o que mais me vem em mente é a imagem que viralizou na época, meados de 2015: um menino, uma criança negra segurando o boneco do herói negro da saga sorrindo ao finalmente se enxergar naquela história que nunca o contemplou.
Isso é cruel pois, se esta criança e muitas outras, esperavam ver alguém parecido com elas, com o mesmo tom de pele, traços similares, mesma textura de cabelo vivendo uma grande aventura, elas foram completamente decepcionadas. O que deixa marcas, casos como estes passam uma mensagem: você nunca vai pertencer aqui. Não necessariamente a uma galáxia muito, muito distante, mas a qualquer história que valha a pena ser contada.
O mesmo vale para nossas vivências acadêmicas, nossas referências intelectuais, nosso ambiente de trabalho, na política, em seu próprio núcleo familiar.
Ainda há aqueles que confundem inclusão com um gesto, uma insígnia a ser exibida e pronto, acabou. Somos incluídos, mas até que ponto?
Até onde podemos caminhar neste mundo que, nitidamente, não foi feito para nós?
Existem exemplos incríveis de representatividade real, genuína e verdadeira. E é neles que nos agarramos. Mas ainda são escassos demais. Foi-se o tempo de aguardar, pois temos urgência. E o tokenismo é como jogar migalhas para quem está com fome e ainda achar que está fazendo demais.
Talvez o ponto de toda essa discussão seja para trazer uma reflexão, um exercício: você, que é preto, se enxerga nos espaços de fala e de tomada de decisões?
E ao branco, olhe ao seu redor, seus meios, diálogos e ambientes. Não seja conivente com a falsa representatividade. Use o seu poder de indivíduo privilegiado para começar essa mudança de dentro para fora.
O mesmo vale para o heterossexual que pode estender a mão e fortalecer, como aliado, a causa LGBTQIA+ e conceder o espaço que ela e seus pertencentes merecem. Da mesma forma, olhar de verdade para Pessoas com Deficiência e não reproduzir o capacitismo, enxergando e confiando em seu potencial, dando a oportunidade que este grupo tanto precisa. Sem marketing, sem mostrar a todos a sua benevolente ação: apenas faça pelo dever para com o próximo que todos temos, embora volta e meia, esqueçamos disso.
Mas há tempo. Sempre há.